A capa preta, a Lurdinha e a lenda: o Rei da Baixada, Tenório Cavalcanti

Tenório Cavalcanti

A história política da Baixada Fluminense é recheada de personagens marcantes e controversos. E desses tantos nomes, a figura que mais me intriga é a de Tenório Cavalcanti.

Talvez você, com seus 20 e poucos anos, não faça ideia de quem se trata. Mas se a sua família é oriunda da Baixada, pergunte aos seus pais, ou avós, quem era “o homem da capa preta”. Mas faça essa pergunta quando tiver tempo disponível para ouvir, porque lá vem história, e das boas.

Antes de falarmos sobre Tenório, você precisa entende e aceitar algumas coisas:
a) O Brasil dos anos de 1920 não era o mesmo de hoje. Tudo era mais difícil, tenso e perigoso. Era um país praticamente feudal, onde saber ler e escrever era um luxo, quando se era pobre.
b) Desafiar os poderosos era decretar a própria sentença de morte. E pouco importava a sua orientação política: tudo era uma questão de sobrevivência.
c) Poderosos eram assim porque tinham o controle da política. E só participavam da política porque eram ricos. Pobres e novos ricos não eram bem vindos nesse círculo.
d) A Baixada Fluminense, nesse momento, era um lugar esquecido pelas autoridades. E não tinha Susana Naspolini, a melhor governadora que o Rio da Janeiro ainda não teve, nem o RJ Móvel, para denunciar o descaso e abuso das autoridades por essas bandas.

Agora que estamos inseridos no clima da Baixada dos anos de 1920, vamos a Tenório.

Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu numa cidadezinha de Alagoas chamada Palmeira dos Índios, em 1906.

Aos 19 anos, Tenório desembarcou no Rio de Janeiro, para trabalhar na construção da Rodovia Washington Luís. Rodovia essa que foi fundamental para o crescimento da cidade de Duque de Caxias que, naquela época, ainda era uma das repúblicas sob domínio de Nova Iguaçu, a União Soviética fluminense.

Fixado no vilarejo de Vila São José, Tenório se dividiu entre o trabalho e os estudos. Construiu patrimônio e se formou em direito. Em 1936, elegeu-se deputado estadual.

Seria uma carreira política como a de tantos outros. Eu disse “seria”. Mas estamos falando de Tenório Cavalcanti.

Em 1937, o Estado Novo acabou com o poder legislativo. Tenório perdeu o cargo, mas não largou o compromisso de representar o povo do seu distrito. E lembre-se: estamos em Duque de Caxias, entre as décadas de 1930 e 40. Não existe lei. São coronéis de um lado, povo pobre do outro e Tenório no meio, como um freio na sede de poder dos barões.

Nesse período não se encarava a elite pregando a não-violência. Cirandas, beijaços e cruzes fixadas na praia não eram (e ainda não são) métodos eficazes de transformação social. Tenório decidiu que usaria a única didática que os “donos”da Baixada entendiam: a da bala. E eu não estou falando da Juquinha.

É preciso que se diga, sobre Tenório, que sua personalidade foi moldada pela dor e violência. O homem da capa preta, ainda menino, foi testemunha do assassinato do pai. Já homem feito, pouco antes de deixar sua cidade natal, vingou-se do assassino a golpes de enxada. Olho por olho, dente de por dente, desde sempre.

Tenório andava armado todo o tempo. Sua relação com armas era tão intensa, que a sua favorita era uma uma submetralhadora alemã MP-40, que ele batizou de “Lurdinha”, em homenagem a filha recém nascida de um amigo. Muito melhor e mais bonito que textão na rede social, finalizado com “titio ama, titio cuida”.

O apelido de “homem da capa preta” vem de um capa que ele utilizava para proteger Lurdinha dos olhos das crianças e das mulheres que, na opinião dele, não podiam ser expostos a armas.

Entre as décadas de 1940 e 60, Caxias recebeu um imenso fluxo migratório de nordestinos. Tenório, para essas pessoas, era um símbolo. O irmão que venceu no Sul. E ele se colocou nesse papel, sendo um benfeitor para esses migrantes: garantia a ordem local, mediava conflitos, batizava crianças e servia até mesmo como uma incubadora de novos negócios.

Diz pra mim: você negaria voto a esse homem?

Pois bem. A elite local se fez a mesma pergunta. Até onde chegaria Tenório, se ninguém o parasse? Sob apelos dos poderosos de Caxias, Getúlio Vargas, o anão mais poderoso da história da república, transferiu o delegado linha dura Albino Imparato para a cidade, com a missão de desmontar o império do Rei da Baixada.

Mas o nosso Ragnar alagoano não se deu por vencido. O delegado fuzilou a casa de Tenório e assassinou alguns de seus colaboradores, numa tentativa de passar uma mensagem para Cavalcanti que, como precursor da filosofia do papo reto nessas terras, recebeu o recado e o respondeu, fuzilando o tal delegado.

Forças federais cercaram a casa de Tenório. Uma fortaleza preparada para resistir a meses de cerco. Nosso capa preta tinha uma .50 apontada para os soldados enquanto Oswaldo Aranha, figura histórica na construção da Organização das Nações Unidas, desembarcava em Duque de Caxias para resolver a treta e, pacificamente, dar fim ao cerco.

Tenório foi deputado federal de 1950 a 1964. E colecionou desafetos. Foi da UDN de Carlos Lacerda, uma espécie de PSL com um pouco mais de noção e um pouco menos de pastores. Mas não podemos classificá-lo como um político de direita, nem de esquerda, nem Marina Silva. Quando foi preciso, Cavalcanti se aliou a Brizola na luta pela democracia.

Quando Lacerda perturbou seu juízo, Tenório saiu da UDN, se filiou ao PST e disputou a eleição de governador da Guanabara contra ele. Disputaria o cargo de governador novamente, mas agora do recém criado Estado do Rio de Janeiro, em 1962, sendo derrotado mais uma vez. E isso só reforça a minha tese de que, o Rio de Janeiro ainda não deu certo, porque não foi governado por alguém da Baixada. Pronto, falei.

Existem muitas outras histórias sobre Tenório Cavalcanti. Esse texto, inclusive, é parte de um outro, bem maior. Resolvi dividi-lo porque são histórias maravilhosas para serem resumidas.

Tenório também não foi prefeito de Caxias. Sua carreira política se perdeu durante da ditadura militar. Morreu em 1987, aos 80 anos, de morte morrida, como se dizia em sua terra natal, transportando-se diretamente para o imaginário dos baixadenses.

E que tantas outras histórias teriam surgido se Tenório fosse governador do Rio? E como seria o estado após o governo do homem da capa preta? Seria Tenório o nosso Batman, ou só o “avô”das milícias, como apontam alguns estudiosos?

Particularmente, prefiro colocá-lo em um lugar onde não se é bom, nem mau, apenas humano.

Publicado por George Baptista

Historiador, editor e palpiteiro de rede social.

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